sábado, 28 de abril de 2012

O DESEJO DA PEDAGOGIA

A Pedagogia é definida como a teoria e a pratica da educação. A educação é uma ação e um processo de formação pelo qual os indivíduos podem integrar-se criativamente na cultura em que vivem. Genericamente podemos dizer que a Pedagogia é uma ciência da formação humana [1]. Um dos dilemas vividos pela Pedagogia se refere à relação entre a construção do conhecimento por parte do indivíduo e a construção do sujeito pelo conhecimento. Pain [2] nos evidencia que “... o sujeito não é sujeito até que conheça. É sujeito porque conhece, e é sujeito a esse conhecimento”. Por que, ainda, há quem não aprenda? Qual a parcela de responsabilidade da Pedagogia frente a essa questão? O ser humano, como já vimos, constrói desde criança o seu acervo cultura a partir de sua curiosidade pelo mundo. Não há quem não aprenda. O que pode haver é que, aquele que tem o ofício de ensinar ocupe o lugar na sala de aula de tal forma, que seu desejo não flui como catalisador de demanda do aprendente. E quando a relação aprendente-ensinante se fecha, a aprendizagem “empaca”, “não anda”, se torna “emburrecida”. Durante muitos séculos, a Pedagogia levou em conta apenas uma parte do ser humano: o sujeito epistêmico, sujeito que se dedica somente ao conhecimento, baseando-se nas capacidades ou habilidades que este indivíduo tem para conhecer, sem levar em conta que cada sujeito tem, ao mesmo tempo, uma história, um destino, algo que o diferencia do outro – sua singularidade . Compreender essas diferenças e dificuldades não é algo tão simples. Exige um trabalho de ação – reflexão – ação que se dá paralelamente à práxis profissional. Adotamos, como referência básica, Libâneo, procurando descrever suas opiniões e idéias de forma integral. Esse renomado autor [3] propõe a discussão do papel da educação frente às novas realidades econômicas, políticas e culturais, definidoras do mundo contemporâneo. Retoma os temas da Pedagogia, da modernidade e das novas tarefas da escola, questionando as perspectivas do futuro para o qual temos de preparar os indivíduos para a reestruturação e desenvolvimento da humanidade. Qual é então o desejo da Pedagogia? Os pedagogos saberão confrontar as críticas pós-modernas à Pedagogia, à escola e ao ensino convencional? Será que ainda é possível acreditar que a escola seja o lugar do desenvolvimento da razão humana, base para a liberdade intelectual e política? Paulo Freire acreditava, quando expressava que “a liberdade é a matriz que dá sentido a uma educação, que não pode ser efetiva e eficaz senão na medida em que os educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica” [4]. Nosso pequeno personagem também acredita, porque ele quer aprender para se libertar da relação opressor-oprimido, que o obriga, todas as tardes, junto com outros "burros”, a repetir conteúdos que não são discutidos por ele. Deseja dialogar com seu professor, indagar, sentir-se respeitado, vivenciando um processo de crescimento mutuo. Um professor engajado numa pratica transformadora, valoriza a linguagem e a cultura do seu aluno, criando condições para que cada um deles analise seu contexto e produza cultura. O professor procurará criar condições para que, juntamente com os alunos, a consciência ingênua seja superada e que estes possam perceber as contradições da sociedade e grupos em que vivem. A preocupação seria com cada aluno em si, com o processo e não com produtos de aprendizagem acadêmica padronizados [5]. Os professores de Pedro, talvez não estejam exercitando uma pedagogia libertadora. O que querem ensinar? Estamos tendo uma oportunidade, neste artigo, de fazer um exercício de reflexão, de compartilhar com o leitor a nossa preocupação com os resultados da pratica pedagógica de nossas escolas. Quais os dilemas e os desafios dos educadores frente aos princípios de uma Pedagogia Crítico Social, que exige maior comprometimento de todos? Não trazemos idéias originais, pois, como Libâneo, outros educadores se dedicam há mais de dez anos ao estudo de uma teoria crítica da educação. Na obra de Paulo Freire, o homem é sujeito da educação e, apesar de uma grande ênfase no sujeito, evidencia-se uma tendência interacionista, já que a interação homem-mundo, sujeito-objeto e imprescindível para que o ser humano se desenvolva e se torne sujeito de sua práxis [6]. Logo adiante [7] o mesmo autor refere-se a pedagogia como uma área de conhecimento que investiga a realidade educativa no geral e no particular. Mediante conhecimentos científicos, filosóficos e técnico-profissionais, ela busca a explicitação de objetivos e formas de intervenção metodológica e organizativa em instâncias da atividade educativa implicadas no processo de transmissão/apropriação ativa de saberes e modos de ação. E o Pedagogo é o profissional que atua em várias instâncias da prática educativa, direta ou indiretamente ligadas à organização e aos processos de transmissão e assimilação ativa de saberes e modos de ação, tendo em vista objetivos de formação humana definidos em sua contextualização história. Ele complementa, dizendo que o fenômeno educativo é um aspecto da realidade social, distinguindo-se de outros aspectos da realidade. Uma analise histórica da Pedagogia nos permite identificar, desde Comenio, Rousseau, Herbart, Dewey, os elementos constitutivos da relação pedagógica: o aluno, os conteúdos, os métodos, a sociedade articulada pela ação do educador. Nessa breve incursão histórica, podemos dizer que a Pedagogia existe desde que houve necessidade de cuidar de crianças e de promover sua inserção num contexto social. A sua institucionalização ocorreu com a modernidade, por volta do século XVI. Não é nosso propósito narrar a história da Pedagogia, mas sim fazer apenas alguns aportes como esses. O que nos interessa é uma outra história: a de Pedro, que transita hoje nas suas duas escolas. Contudo, não podemos deixar de citar Comenio, considerado o fundador da Pedagogia moderna, inaugurando a orientação que se tornará dominante: a de que a educação é a garantia da formação do homem para a humanidade, que a escola é uma verdadeira oficina do homem [8]. A pedagogia realista de Ratke, Comenio e Locke trazem pra a educação o que Bacon propunha para a ciência da época: o conhecimento vem da experiência, portanto, deve começar pelo estudo da natureza, pelo conhecimento das coisas. E se a referência é a natureza, deve-se respeitar a natureza da criança. Temos então uma atenção nova à individualidade do educando. No século XVIII, chamado de século da Pedagogia surgem grandes nomes como Rousseau e Pestalozzi e se desenvolve a educação publica estatal, iniciando-se a educação nacional. Pertence ao século XVIII o desenvolvimento da educação publica estatal, a educação para a cidadania, para a nacionalidade, a adoção do principio da educação universal, gratuita e obrigatória. O século XIX se distingue por mergulhar a teoria educacional mais a fundo na modernidade, inaugurando a cientificidade da Pedagogia, desvinculada da Filosofia e tornando-se saber cientifico, enquanto conhecimento metódico, sistematizado e unificado. No século XX a Pedagogia ainda se depara com os paradigmas clássicos, que expressam posições ou tendências, demarcando distintos modos de entendimento do processo de formação humana [9]. Se pudéssemos, agora, refletir, brevemente, sobre o desenvolvimento dos estudos da Pedagogia no Brasil, veríamos que a Pedagogia, como ciência geral da educação, perdeu prestígio. A Pedagogia tem vulnerabilidades, configurando uma crise em vários aspectos: na determinação da especificidade do seu saber, no reconhecimento social do seu campo profissional, no grau de desempenho e eficiência das instituições e dos educadores. Libâneo [10] esclarece que a identidade profissional do pedagogo se reconhece, portanto, na identidade do campo de investigação e na sua atuação dentro da variedade de atividades voltada para o educacional e para o educativo. O aspecto educacional diz respeito a atividades do sistema educacional, da política educacional, da estrutura e gestão da educação em suas várias modalidades, das finalidades mais amplas da educação e de suas relações com a totalidade da vida social. O aspecto educativo diz respeito à atividade de educar propriamente dita, à relação educativa entre os agentes, envolvendo objetivos e meios de educação e instrução, em várias modalidades e instâncias. Desse modo, todos os profissionais que se ocupam de domínios e problemas da prática educativa em suas manifestações e modalidades, e onde haja um caráter de intencionalidade são, genuinamente, pedagogos: pais, professores, supervisores de trabalho, agentes dos meios de comunicação, autores de livros, orientadores e guias de turismo, agentes de educação em movimentos sociais, etc. Essa argumentação permite afirmar que o trabalho pedagógico não se reduz ao trabalho escolar e docente, embora todo trabalho docente seja um trabalho pedagógico. Poderíamos acrescentar que a base da identidade profissional do educador é a ação pedagógica, não a ação docente. . E como se dá essa ação docente na sala de aula de Pedro? Ele relata que tem duas escolas: uma para aprender e outra para passar de ano. Uma única escola torna-se para Pedro uma outra escola, desta vez, uma escola dividida pelo seu imaginário. Uma escola cindida, tal qual às vezes se sente. Uma escola é gostosa (pelos amigos), o saber tem algum sabor. E a outra, onde recebe reforço escolar, que é só para ser aprovado, ser aceito pelos outros. Temos então um sujeito dividido. Pedro diz ainda que a outra escola, a de passar de ano é o lugar do burro, significante que a mãe costuma expressar. Então eu sou burro, deve pensar Pedro, murmurando baixinho um “ não sei ” que repete em casa e na escola. Pedro acha que não sabe. E essa escola aborrecedora aborrece Pedro, mesmo antes dele iniciar o (re)forço das matérias que não consegue aprender. Reforço significa aquilo que reforça, aumento de força, ou seja: as aulas de reforço (re)forçam o fato de Pedro não saber. E ainda tem o fato dele ser forçado a comparecer. Essa obrigação fragiliza a relação de Pedro com a escola, sendo uma relação que destrói a alegria de ir à escola. Daí o fastio, o tédio. Como bem sintetizou Alicia Fernandes [11]: Existe uma reciprocidade entre o aborrecimento e a queixa, que cerceiam a anatomia do pensamento do ensinante e do aprendente. A queixa ocupa o lugar de desejar conhecer. O aborrecimento não se nomeia, instala-se e cala o pensamento. Poderíamos acrescentar que assim como os professores se queixam e os alunos se aborrecem, os alunos se queixam e os professores se aborrecem. Essa dupla cena é paralisante. Uma criança se aborrece onde não se reconhece, onde não pode ver nada próprio. Não é reconhecida pelo outro, o que remete à onipotência. Pedro apresenta um forte desejo de saber, pois opta pela Escola que ensina e não gosta da outra, que “repete” mecanicamente. Ele prefere o primeiro programa de sala de aula regular, que cada dia apresenta conteúdos novos, apesar da professora não estar atendendo sua demanda individual, tão preconizada pela educação inclusiva. Por isso ele faz uma opção pelos amigos, como aquilo que o embala a aprender, a aprender pelo menos que sabe distinguir uma escola da outra, o bem do mal/mau. Insistimos em dizer que o ato de aprender pressupõe uma relação com outra pessoa , a que ensina. Aprender é aprender com alguém. E nos concentrando agora nesse com , nesse espaço professor-aluno, deixando de lado os conteúdos que transitam do professor para o aluno e do aluno para o professor. Pouco importa o que o professor esteja ensinando – o que importa é como está se relacionando com seu aluno nesse momento. Alguns de nossos professores do “curso primário” estão presentes em nossa memória, em especial aqueles em quem depositamos nossas crenças e nossos afetos. É essa relação afetiva primitivamente dirigida aos pais que assegura o poder ensinar e o poder aprender. É a essa energia que chamamos de transferência. Assim, um professor pode tornar-se a figura a quem serão endereçados os interesses de seu aluno porque é objeto de uma transferência e o que se transfere são as chamadas experiências vividas primitivamente com os pais. Esse lugar transferencial é muito significativo na Pedagogia, que porta o desejo de ensinar, que ocupa o lugar de poder na educação. A história mostra que a tentação de abusar do poder é muito grande. No caso do professor, abusar do poder seria equivalente a usá-lo para subjugar o aluno, impor-lhe seus próprios valores e idéias. Em outras palavras, impor seu próprio desejo. Se o professor cede a essa tentação, cessa o poder desejante do aluno. Quando o aluno aprende tão somente conteúdos, grava informações, espelha fielmente o conhecimento do professor, provavelmente não sairá dessa relação como sujeito pensante. Não se trata, obviamente, de pedir ao professor que compareça à relação pedagógica com seu desejo anulado, como pessoa esvaziada. O professor também é marcado pelo seu próprio desejo inconsciente. Aliás, esse desejo que o impulsiona para a função de mestre. Por isso, o jogo de aprender e ensinar e entre ensinante e aprendente é muito complicado, mas também delicado e prazeroso. Só o desejo do professor justifica que ele esteja ali na função de ensinar. Mas, estando ali, ele precisa renunciar a esse desejo, para acolher o desejo do aluno. Talvez seja essa uma das razões para Freud [12] se apoiar na idéia de que a educação é impossível. Mas, há de se insistir, porque esse encontro entre ensinante e aprendente é um grande desafio. Se o educador renuncia a uma atividade excessivamente programada, controlada com rigor obsessivo, ele poder organizar seu saber, mas não tem controle sobre os efeitos que produz sobre seus alunos. Pode até ter uma noção, através de uma prova, por exemplo. Mas não conhece as muitas repercussões inconscientes de sua presença, de seus ensinamentos. Tudo isso vai se dar na lógica do só depois. Quando o professor consegue pensar dessa maneira, ele passa a não dar tanta importância ao conteúdo daquilo que ensina, mas passa a ver esses conteúdos como a ponta de um iceberg muito mais profundo, invisível aos olhos. Parece-nos que é essa a grande contribuição da Psicanálise ao educador: uma ética, um modo de ver e de entender sua prática educativa. Esse novo saber pode gerar possibilidade subjetivas de cada educador, uma posição, uma filosofia de trabalho. Continuando nossa reflexão sobre o desafio de saber ensinar, lembramos de perguntar: ensinar o que? Seriam todos aqueles saberes que vão permitir ao aprendente atuar no mundo em que vive de forma crítica e consciente? “É algo que se define pelo engajamento do educador com a causa democrática, e se expressa pelo seu desejo de instrumentalizar política e tecnicamente o seu aluno ajudando-o a constituir-se como sujeito social [13]”. “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina a aprender.” [14] “Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação” [15]. Enredando pelo fio do desejo, nos deparamos com a educação dialógica de Paulo Freire quando diz que “o diálogo deve ser tarefa essencialmente de sujeitos e que não pode ocorrer na relação de dominação” [16]. É esse diálogo dentro da concepção de liberdade que já enfocamos nesse artigo quando comentamos um fragmento do caso de Pedro. Porque para que a dialogicidade se estabeleça, é preciso que educador e educando se perguntem em torno de que irão dialogar. O dialogo implica em desejo, porque esse também tem sua própria inquietude. As queixas dos alunos, que podem ser representadas na fala de Pedro, referem-se em torno da obrigação: “estamos submissos ao poder deles” (professores): “eles decidem”; “eles escolhem os temas”. Muitos alunos, porque não conseguem dialogar, expressar seu desejo, sentem que a obrigação é a responsável pelos seus males (entendido como dificuldades, aborrecimento de ir à escola). Outro aspecto a ser considerado é o espaço escolar, que é por excelência um espaço terapêutico onde circula o saber (cognição) e o afeto. “O interdito que separa a intelecção da afetividade parece ter sua origem em que, frente a uma percepção mediada pelo tato, gosto ou olfato, o ocidente preferiu o conhecimento dos exteroceptores, ou receptores à distância como são a vista e o ouvido. Nossa cultura é uma cultura audiovisual” [17]. A escola herdou a tradição audiovisual. Para “assistir“ à aula, a criança precisaria ter apenas um par de olhos, ouvidos e ocasionalmente ser acompanhada das mãos, para segurar um lápis. O resto do corpo não precisa ir: “ olhar e não tocar chama-se respeito ”, já diz o dito popular. Como bem sintetizou Restrepo, “a intromissão do tato, do gosto ou do olfato na dinâmica escolar é vista como ameaçadora, pois a cognição ficou limitada aos sentidos que podem exercer-se mantendo a distância corporal” [18]. Pode-se inferir que Pedro, na escola do reforço, permaneça quieto, com o olhar voltado para frente. Não pode entrar em contato com os seus colegas – a tarefa (re)forçada é para ser cumprida. Rubem Alves, ao falar de sua experiência, diz que a inteligência começa nas mãos, porque as crianças não se satisfazem com o ver: elas querem pegar, virar, manipular, desmontar, montar... E continua o mestre: “a função dos olhos é mostrar para as mãos o caminho das coisas a serem mexidas... assim como há casas que emburrecem” [19], também há escolas que emburrecem onde a inteligência não pode florescer junto ao afeto. Ou nas “sábias” palavras de Pedro: “a escola bem que poderia se transformar num lugar gostoso de aprender”.

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